Jurandir saía para almoçar, da casa lotérica “Velocino de Ouro”, onde trabalhava, sempre às dez horas da manhã. Seu Jasão, que era o gerente, queria ele de volta às onze, porque a partir desse horário começava o maior movimento. Como tomava café às oito, Jurandir preferia gastar seu tempo caminhando pelo centro. Trabalhava na José Inácio; seguindo em direção ao rio encontrava a Voluntários, dobrava à esquerda e ia até o Mercado Público olhando as ofertas e, principalmente, namorando aquele tênis todo preto pelo qual se apaixonara ao ver a propaganda da TV.
Passava por dentro do mercado, chegando na Prefeitura Velha e ali ficava a observar o estilo antigo, curvo, com pequenos detalhes, contrastando com a linearidade dos modernos prédios revestidos de vidro. Também faziam parte do cenário a fonte e as pombas, as verdadeiras donas daquele espaço. Humanos vêm e vão e elas ficam ali, tomando água na fonte, dando pequenos mergulhos, brincando, protegidas pela cerca de ferro como que provocando: “Aqui vocês não podem vir”. E o mais importante, os dois leões, parados, em estado de alerta, guardando as escadas e esperando a volta do mago que lhes aprisionou as almas e os transformou em estátuas. Ali Jurandir costumava ficar, sempre parando em um local diferente, para ter vários pontos de vista e absorver todas as possibilidades daquele espaço.
Quando não chovia, ia até a Praça da Alfândega ver as árvores. Como naquele dia. O céu azul que acompanhava o sol da primavera e emoldurava os prédios emprestava a tudo uma coloração especial. O tempo parecia mais arrastado. Foi quando ele viu, na esquina da Sete de Setembro com a Uruguai, o furgão da transportadora de valores estacionado, de onde os seguranças retiravam alguns malotes e levavam para dentro do Banco do Brasil. Era como se Jurandir estivesse assistindo a um filme em câmara lenta, do qual passara a fazer parte quando tomou a direção do furgão. Por um momento ninguém estava olhando para ele. Em sua frente o malote, no chão, parecendo uma grande sacola com a alça para cima. No mesmo passo, sem vacilar, um único movimento, sincronismo de balé. Em sua cabeça o tênis preto da propaganda, em sua mão o malote. Ele atravessa a rua sem olhar para trás. Na General Câmara pega à esquerda e sobe a Ladeira.
Quase não viu as mercadorias que um vendedor, vestido à moda anos sessenta, estava expondo espalhadas por uma lona estendida na rua. “Cuida as minhas bolsas aí, malandro. Vai pisar em cima, é?” A voz do outro o trouxe de volta, quebra o encanto, o tempo retoma seu compasso. “Bolsa, é isso!” - pensa Jurandir. “Quanto custa aquela grande?”, ele pergunta ao vendedor. “Trinta reais”, é a resposta. A mão de Jurandir se dirige ao bolso, hesitante, mas o peso do malote, na outra, o fez decidir. “Toma, eu vou levar”. Enquanto o comerciante alcançava-lhe a bolsa e colocava o dinheiro na pochete que carregava amarrada à cintura, ele lembrou-se que aqueles eram os trinta reais que faltavam para o tênis. Havia seis meses que já estava economizando.
Com o malote dentro da sacola subiu em direção à Duque de Caxias e foi até a Santa Casa. Parou um pouco no terminal de ônibus da Praça Dom Feliciano, quando passou um carro da polícia, sirene ligada. Um frio gelado percorreu a espinha daquele que imaginava ser o mais novo procurado pela lei e depositou-se em seu estômago. Uma ânsia começou a se formar e crescer rumo à sua garganta. Só caminhando a sensação parecia diminuir, quanto mais rápido melhor. De repente, Jurandir estava correndo pela Independência com toda velocidade. Na descida da Mostardeiros, já não agüentava mais, quase caiu. Quando chegou ao Parcão estava morto de cansado. Atirou-se, sem forças, no gramado embaixo de uma árvore, abraçado à bolsa.
A ânsia tinha passado, na verdade era como se tudo tivesse passado. A única coisa que existia era seu coração que parecia gigante, comprimindo-se contra o peito. A respiração era feita pela boca, sofrida. Aos poucos, as partes do corpo fatigado foram se entendendo, a sensação foi ficando boa e, abraçado à bolsa, dormiu.
Ao sono acompanhou-lhe um sonho. Jurandir caminhava por um campo infinito, um verde estendido a qualquer horizonte, onde pastava um cordeiro com o pêlo de ouro. Parecia-lhe perto, bastava uma curta caminhada. Mas, a cada passo, o cordeiro afastava-se, tão próximo e ao mesmo tempo tão distante. Resolveu correr e correr e correr. E sua vontade de alcançar o animal dourado foi aumentando. Num último esforço, ele dá um enorme pulo, como se quisesse voar. Quando atinge o solo, sente um puxão nos braços. Acorda.
Abrindo os olhos, Jurandir viu um pivete correndo com sua bolsa. Levantou-se gritando: “Eu vou te pegar, seu filho da puta!”. O pivete olhou para trás, era pequeno e tinha que carregar a sacola apertando-a com os dois braços contra o peito, tropeçou e bateu direto contra um banco de concreto.
Jurandir aproximou-se. A cabeça do menino tinha uma fenda por onde saia um filete de sangue que, escorrendo pelo rosto, chegava até a sacola, aberta pela queda, deixando à mostra metade do malote. Mas, o que realmente chamou-lhe a atenção foi o tênis do pivete, desproporcional ao seu tamanho e novo em folha. Era preto, o mesmo da propaganda e dos seus sonhos. Olhou embaixo da sola - número quarenta, o seu número. “Deve ter sido por isso que ele caiu”, pensou. Analisou a cena toda, passou em revista todos os acontecimentos. Tomou como um sinal o sangue que se espalhava pela bolsa. Retirou seu par de tênis velho e calçou-o no pivete, enquanto colocava o dele. Foi embora suspirando ao pensar que no outro dia iria até a Prefeitura, bem confortável em seu novo tênis, olhar a fonte, as pombas, as pessoas e os leões.